Rádio Paisagem

O rádio e o devaneio (fragmento)

Ao contrário, o rádio está certo de lhe impor solidões. Nem sempre, naturalmente. Não se trata de escutar esse tipo de transmissão numa sala de baile, num salão. É preciso escutá-la, não digamos numa cabana, isso seria belo demais, mas num quarto, sozinho, à noite, quando se tem o direito e o dever de colocar em si mesmo a calma, o repouso. O rádio possui tudo o que é preciso para falar na solidão. Não necessita de rosto.

O ouvinte encontra-se diante de um aparelho. Esta numa solidão que não foi ainda constituída. O rádio vem constituí-la, ao redor de uma imagem que não é apenas para ele. que é para todos, imagem que é humana, que está em todos os psiquismos humanos. Nada de pitoresco, nenhum passatempo. Ela chega por trás dos sons. sons bem feitos.

Assim é que poderia ser tratado o problema da insônia : "Ah, cale-se! Não fale de seu vizinho, não fale de sua mulher, nem de seus superiores, nem de seus subalternos. Volte a você mesmo, alimente a poesia de seus arquétipos, venha para suas raízes. Você vai dormir. Você está justamente no plano do devaneio que começa e logo estará no plano dos sonhos profundos, dos sonhos que não serão pesadelos se você tiver dado aos arquétipos a beleza que lhes convém. Você os vê, ei-los, os arquétipos, nessa espécie de plano do rádio inconsciente. Eu, eu tenho as nuvens, tenho o fogo, tenho o riacho, tenho o brejo — os brejos, isso é importante —, tenho a floresta : olhe o que se poderia dizer para entrar na floresta, para estar ao abrigo na floresta, para não ter medo da floresta, onde comumente a gente se perde; a floresta maternal pode nos acolher ou, pelo menos, acolhê-lo por uma noite: não existe lobo na floresta."

O rádio está verdadeiramente de posse de extraordinários sonhos acordados. Mas então, dirão alguns, a quem isso vai servir? A todos que tiverem necessidade disso, evidentemente. "A que horas é preciso fazer essa transmissão? Para mim é preciso que seja às 8 e meia, porque me deito às 9 horas."' Poder-se-ia transmitir um pouco mais tarde, para os notâmbulos, se bem que os notâmbulos estejam ainda numa vida tão agitada que não são suscetíveis de receber a boa filosofia do repouso.

Será então necessário mudar de hora a cada dia. Segunda, às 8 e meia; terça às 9; cerca de 10 e meia no final da semana. Cada um terá pelo menos um recurso, nesse sistema, para dormir uma boa noite por semana.

E se os engenheiros psíquicos do rádio forem poetas que desejam o bem do homem, a doçura de coração, a alegria de amar, a fidelidade sensual do amor, prepararão boas noites para seus ouvintes.

O rádio deve anunciar a noite para as almas infelizes. para as almas pesadas : "Trata-se de não mais dormir sobre a terra, trata-se de entrar no mundo noturno que você vai escolher."

Gaston de Bachelard

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CategoryOther
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